terça-feira, 17 de novembro de 2009

O segredo

   Chegue mais perto, vou lhe contar uma história. É breve e insignificante assim como minha vida que também recebe esses atributos. Ao longo dessa minha existência que com alguns pesares custa a passar, conheci muitas pessoas, mas passaram por mim e disseram-me adeus tão rápido que não consegui guardar nitidamente a forma, o tamanho e a cor dos seus rostos, muito menos os seus nomes se é que me esforcei um dia para decorá-los. Algumas dessas pessoas eram amáveis no início, como luzes que iluminam os dias e as horas, mas tornaram-se amargas e arrogantes em questões de segundo, como se fosse uma bipolarização instantânea. Outras pessoas não tinham o prazer da transformação, eram amargas e arrogantes por si só.
   Eu me esforcei e tentei entendê-las, compreender seus sentimentos mais íntimos e alcançar os seus desejos, mas foi em vão. Todos os meus esforços foram ofuscados e fiquei observando de longe, descobrindo aos poucos que quem despertava a arrogância e o desprezo nas pessoas era justamente eu, impulsionado pelo meu ceticismo e minha apaticidade. Confesso que foi dolorido aceitar essa realidade, mas me conformei como todo bom entendedor. Não nego que por algumas poucas vezes tentei alguma nova aproximação, mas o céu que até então era vivo, com a minha chegada se tornava nublado e uma tremenda tempestade ameaçava cair. Me acomodei nos pensamentos soltos que navegavam entre o tédio e a solidão, agora que havia descoberto o segredo que me cercava não ousaria causar transtornos a mais ninguém.
   Esqueci de citar que minhas tardes eram em companhia de uma cadeira de balanço que rangia toda vez que recebia o peso do meu corpo vazio e gelado, gelado como que anunciando que o fim estava próximo. Próximo mas que ainda me torturava com minha solidão medíocre e eterna, mesmo que eu quisesse revertê-la no fim do dia. Observa-se que tenho um grande apreço por essa minha cadeira, que mesmo obrigada continua movimentando a brisa em meu rosto, bem sabe-se que se tivesse vida própria também fugiria de mim, assim como todas as outras pessoas, descartando-se dessa velha e inapropriada pedra no sapato.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Apenas a guerra merece fidelidade


Caminhava pela rua trazendo um sorriso estampado radiante em seu rosto, embora a guerra tivesse lhe tirado a juventude e o ânimo predominantes, traços de sua antiga beleza destacavam-se por entre as olheiras e os fios grisalhos. No braço esquerdo trazia uma mochila com pouquíssimos pertences, entre eles seu uniforme de soldado que havia lhe proporcionado muitos méritos e com a mão direita trazia um par de rosas vermelhas que escorregavam por entre os tocos dos dedos que lhe restavam. No bolso interno da camisa carregava a foto de sua bela esposa, um sorriso gracioso e um olhar apaixonado que encarava seu fotógrafo, o retrato possuía inúmeros riscos brancos devido a quantidade de vezes que havia sido desdobrado, não cansava de olhar aquela imagem, era como um colírio para os olhos depois de uma maré de sofrimento.
Agora estava bem à frente de sua casa, seu lar. O coração acelerava teimando em saltar pela boca, suas pernas estremeciam e vacilavam ao subir os degraus da escada. Uma força surpreendente lhe invadia o peito, há quanto tempo esperara por aquele momento? Há quanto tempo desejara ardentemente rever aquele cabelo comprido, aquela boca avermelhada?
Experimentou a porta, estava destrancada. Entrou lentamente evitando ao máximo qualquer rugido ou som que anunciasse sua presença, avançou pela sala e encontrou espalhadas pelo chão algumas roupas e peças íntimas tanto feminina como masculina que seguiam em direção ao quarto. Seu olhar apaixonado e saudoso agora se transformara em cólera e repúdio, depositou sua mochila devagar no chão, tirou os sapatos e  dirigiu-se para junto da promíscua.
Estavam na cama envoltos por um sono profundo, ele a enlaçava com o braço direito e com o oposto pousava a mão em sua barriga. Em seu descanso ela nem imaginava que ele havia regressado e ele não podia acreditar que ela fora capaz de tamanho adultério.
Em silêncio pegou o retrato que guardava com tanto carinho e despedaçou-o em quatro pedaços, junto com as pétalas de rosa despejou-os nos pés daquela infame e com uma lágrima ofendida saiu pela porta aberta.
Apenas a guerra merecia fidelidade.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Amor solúvel

Neste sepulcro frio e mórbido
Ouço os corvos cantando em luto
Eles sentem o sabor de sua morte
Lamentam-se em seu leito eterno

A boca que um dia beijei,
Já não me é palpável ou ardente
Os carinhos que entreguei
Transformam-se em pó solúvel e perdem-se na quietude do vento

Seus negros olhos vazios, banham-se com o brilho da noite
Essa mesma noite que castiga-me
Levando toda ternura e paz existentes em meu peito
Retirando toda a cor que penetrava minha face

Sendo a morte assim tão dolorosa
Que venha ela descansar-me profundamente
Sou nada menos que um cadáver inexistente que perambula pela terra inerte
Sem rumo, sem vida, sem alma

Ó morte que reluta em chegar
Busque-me rápido
Com o crepúsculo vindouro
Quero abraçá-la novamente e acordar-te deste sono

Alivia-me desse sofrimento
Que dia após dia tortura-me em viver sozinho
Apodrecendo lentamente
Sem você, meu amor.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Ode à inveja barata

   Cada gota de sangue que escorre pelos olhos significa um brilho no olhar de outrem.
   Derrotas, decepções e escassez de sentimento manifestam alívio e glória de quem na verdade almeja pelo seu sofrimento.
   Quando uma vitória é dura e finalmente conquistada, um punhal é cravado no peito dos raivosos e mais uma fúria se acende.
   Na verdade tudo gira em um ciclo de interesses. Se não agora, depois. Cada qual se mostra digno de um ou mais defeitos, egocentrismo exagerado e manipulação constante.
   Até chega a pensar que poderia reverter o quadro, mas quanto mais tenta, mais se afunda.
   Sem escalas.
   Uma rotina incansável.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Libertação

   Basicamente, já estava conformada com aquela vida desprezível. Guardava aquele segredo de todos, era vergonhoso, repugnante. Revelar aquela bomba seria assumir um atestado de inferioridade, preferia deixar como estava, até que um dia ele finalmente cansasse. Quem a via na rua não imaginava que por trás daquele rosto bonito na verdade só restasse dor e um pedido de ajuda, fazia de tudo para que não transparecesse que estava sozinha, passava uma imagem forte, confiante, mas sabia que era totalmente o oposto.
   Não havia sequer um dia que não rezasse para aquele tormento parar. Deus entretanto, ou qualquer outra força superior, não a ouvia. Todas as suas preces e orações se tornavam ecos em seu quarto, com o tempo desistiu de pedir proteção.
   Mais uma noite, dessa vez estava preparada. Ouviu passos no corredor, já sabia que era ele vindo procurá-la. Ficou recostada na cama enquanto ele vinha lhe afagar o corpo, tampou sua boca com a mão direita e a penetrou. Ele sentia prazer, sentia-se excitado em machucá-la, era nojenta a forma que a tocava e nojenta a forma como gemia com cada orgasmo.
   Mas aquilo teria um fim...
   Enquanto ele fazia movimentos frenéticos em cima dela, enquanto ele abusava de alguém do seu próprio sangue, não hesitaria. Agora ela tinha coragem, a coragem que antes lhe era reprimida, não tinha medo de acabar com tudo aquilo, com uma faca que havia pegado da cozinha terminaria aquele caos. Agora poderia dormir sem se preocupar em deixar a porta aberta. Contou até três e cravou a faca nas costas do pai.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Sufoco

   Era como se algo faltasse, sentia um vazio, tinha pena de si mesma, não tinha amor próprio. Todos lhe falavam, mas para seus ouvidos pareciam apenas palavras, simples. Sentia que estava perdendo seus amigos, mas no fundo não era sua culpa, entendia que os outros desconheciam seu desprezo pela vida e o que faziam era apenas recrimina-lá.
   O problema estava dentro dela mesma, precisava assumir um lado e adquirir autoconfiança, precisava travar uma batalha com seu próprio ser e necessitava sim, ganhar aquela guerra. Mas como vencer se não tinha esperança? Todos os sonhos que idealizava eram dissolvidos em névoa, não tinha força para terminar algum projeto insignificante, sentia que cada vez mais se afundava, mas como sair daquela escuridão se nem mesmo sabia qual era o motivo de tanta angústia?
   Os sons, as imagens, com o tempo foram ficando distorcidos, sem nexo, sem razão, para cada lado que olhava via nos olhos das pessoas uma cobiça, sede de vitória, vingança, tudo girava em torno do dinheiro e o dinheiro girava em torno das pessoas. Momentaneamente acreditava que a ideia que visualizava dos outros era apenas um esconderijo para a sua própria personalidade, não queria aceitar que era materialista, insensível e intolerante, mas se ela mesma era assim, por que tais indivíduos a incomodavam tanto? Estava confusa, perdida em meio à turbilhões de pensamentos, precisava decidir o caminho a seguir, mas qual seria o certo?
   Tantas perguntas, tantas dúvidas e nenhuma resposta, rejeitava toda e qualquer ideia que lhe vinha à mente, era como se suas opiniões e escolhas fossem as mais repugnantes, as mais absurdas, não sabia o que era melhor para si e não queria que ninguém lhe ajudasse. Observava pela janela e ficava com o olhar fixo em um ponto irreconhecível, ilegível, pensamento oculto, olhos vagos. Será que um dia poderia se libertar dessa dor? Será que um dia descobriria que era só uma fase? Sem resposta, ficou sentada esperando o sufoco passar.